Por Tauan Carvalho
Sabe quando recebe uma responsabilidade grandiosa e cara para as pessoas com quem você está comungando de uma experiência e o que resta é você aceitar o convite, chamado, escolha como oportunidade para assumir um processo de cocriação de cura?
Acredito que foi isso que ocorreu quando a Professora Paola Barreto, orientadora e coordenadora do Balaio Fantasma, me passou a vez e voz para estipular e imaginar um cronograma breve de visitas a ateliês de artistas soteropolitanos que abordassem em suas a cultura Vodun, presente e fruto do Benin, origem de Rossila Goussanou e Lylly Houngnihin, intelectuais que estavam em processo de pesquisa especializado em arte, curadoria e decolonialidade em Salvador.
Pensar em possibilidades dentro desse recorte específico em pouco tempo foi avassalador e instigante ao mesmo tempo pelo fato de ter que selecionar caminhos, sintetizar rotas e organizar o “baba” sem deixar de ressaltar a importância dos diálogos contemporâneos e suas nuances nas vórtices do tempo espiralar chamada Salvador.
O primeiro nome em mente foi o de Annia Rízia, artista que tem realizado obras escultóricas fantásticas em cerâmica, aquarela e utilizando o barro e argila, elementos importantíssimos para a cosmopercepção da vida para religiões de matriz africana em terras brasilianas, baseadas na ancestralidade e sua conexão com a figuras, personas e vivências das periferias pretas soteropolitanas, enfatizando a juventude preta e suas estéticas.
Sentir suas obras, principalmente após a visita às suas esculturas-ideias, é repensar imagens de salvaguarda do cuidado à ancestralidade, tantos com os ensinamentos vindos dos mais velhos, a potência das juventudes pretas de SSA enquanto movimento de afirmação política e de vida. Como diria Ventura Profana: “ as velhas terão sonhos/ as novas terão visões”.
O segundo nome surge como um acaso no fundo da mente e se mostrou como uma bela surpresa: o Zé Diabo, ou Zé Adário, conhecido como o escultor/ferreiro mais celebrado dos terreiros de candomblé da Bahia pela sua criatividade, empenho e sensibilidade ao criar ferramentas e paramentas icônicas que mediam a conexão entre devotos e os orixás e entidades do Candomblé nessa cidade mais preta fora de África. Ogum guia seu trabalho enquanto orixá da tecnologia, ferro e das batalhas e ele continua mediando essa comunicação divina por meio da forja do ferro.
Ter feito a curadoria dessa pequena jornada de visitas foi importante para repensar e reafirmar a profundidade do mantra professado pela intelectual Marimba Ani: “Sua cultura é seu sistema imunológico”. Propor reflexões e momentos de espelhamento, autoconhecimento da cena artística da sua cidade, uma abebelidade, pensamento-ação de quem quer se curar e promover águas de escuta e de expressão sobre estratégias de resistência, libertação e cura, principalmente através das nossas formas de feitiçaria, encantaria e curanderia.
Encantar o mundo transformando elementos da natureza em outros que exerçam gestos de reciprocidade, salvação do que realmente importa, guarda de memórias que imbricam nas encruzilhadas da vida e pensar no tempo enquanto regente para ensinar comunidades de afetos possibilidades de vitalidade e de bem viver com nossos arquivos afrodiaspóricos.
O processo de cuidar/curar dessas memórias, encruzilhadas e águas que nos constituem é tentar compreender a tradução em corpus, gestos performáticos, objetivos vestíveis, itens materiais de conexão espiritual, artefatos, vestígios e escavaduras do que a gente foi e do que podemos ser. fertilizar um procedimento de lidar com a dororidade existente na história que foi nos contada sobre os ancestrais retirados violentamente de África e tentar sarar, recuperar e salvaguardar o propósito que é possível sentir através delas e das suas presenças no mundo e suas relações com as arquiteturas de poder.
Ressalto a travessia de apurar/acurar caminhos de gramáticas das sensibilidades pretas por meio da Assunção de uma pedagogia Abayomi: pensar o encontro enquanto feitura de uma magia preta em prol de conhecer possibilidades de ‘manipulação de vitalidades’ como receita a intelectual Castiel Vitorino Brasileiro. Creio que nutrimos essa magia e conhecemos processos de feitiçaria de dois artistas excepcionais de Salvador-BA que potencializaram curtos tempos-espaços.
O tempo foi um fator que nos tocou imensamente, pelo fato de tentarmos moldá-lo ao nosso favor a fim de fazer as viagens e visitas fazerem sentido às rotinas coloniais em rumo a um novo mundo de mergulhos. Pode-se perceber que esse elemento foi um detalhe não completamente ao nosso belo controle diante das circunstâncias Abayomis de tessitura momentânea. O tempo foi costurando as redes de imersão em epistemologias de vitalidade e quase perdíamos o controle dele.
Um fato curioso é que, ao final da visita ao trabalho de Zé Diabo, fomos ao bar que ele costuma frequentar para trocarmos papo afora de forma rápida. Assim que algumas pessoas resolviam ir embora, elas eram impossibilitadas por razões inexplicáveis. A pessoa mediadora da visita, que nos recebeu junto ao seu Zé, nos explicou que, de forma mágica, grealmente, pessoas convidadas pelo artista para papear em mesa de bar só conseguiriam ir embora em duas condições: se seu Zé resolvesse também sair de lá ou se ele desse ‘permissão’, autorizasse a sua ida. E foi exatamente o que aconteceu. Ficamos ali naquele bar fixadas naquela realidade de submersão dimensional mágica e eu e Duda só conseguimos sair de lá após a volta para casa do seu Zé. Depois de situadas nessa lógica fora do nosso senso comum, percebemos que às vezes se entregar ao Tempo e à intuição é o mais importante caminho a se trilhar.
Essa história resume o que temos feito no campo de curar dores, pensar a curadoria como sistema imunológico e bordar as sensibilidades da magia preta com fundamento da nossa arquitetura de curar as estruturas que nos perseguem, nos rodeiam e fazem parte da nossa formação . Insistir no Tempo e na intuição enquanto tecnologias ancestrais de comunicação e cântico presentificado para versar palavras, gestos e toques de uma transformação de paradigma, panorama e perspectiva. Precisamos aprender com o Tempo a fazer magia, feitiçaria e encantaria e poder fabular jeitos antigos, mas nunca desatualizados de curar a dor com o que já temos em mãos, pés, ORÍ, pele, corpo. “Corro devagar, porque meu tempo é outro”, disse uma amiga. Para mim, depois dessa experiência mágica, o processo curatorial tem sido sobre ir contra a política colonial vil do esquecimento, acreditar no Tempo e fazer magia de presença, do caos e da memória em suas tranças e costuras frutificadas pelo sonho do encontro e o encontro do sonho.