O digital não entenderia
O digital quando traduz informações analógicas cria uma representação do analógico. Temos uma falsa ideia de que o digital é uma evolução do analógico, é melhor que o analógico, quando na verdade cada um tem suas particularidades.
Não é um tema novo em nosso blog, já falamos sobre ele no post “Analógico X Digital”, mas gostaria de retomá-lo, pensando de uma forma mais ampla do que apenas o som, e em nosso contexto de pesquisa em pandemia.
Pelo fato do digital ser uma representação do analógico, o digital carrega menos informações que o analógico, sendo o analógico em teoria em infinito, como por exemplo o sinal eletromagnético, quando eu armazeno esse sinal de forma digital eu guardo intervalos desta informação, e perco outros, essas informações perdidas me interessam e muito, nelas estão o oculto, o não visto, é rico de imaginação e de possibilidades.
Podemos pensar que o digital tem uma áurea de liberdade, de livre manipulação, porem quando se analisa um pouco mais vemos que isso tem um preço, e o preço da manipulação é que trabalhamos com dados que já na teoria são informações incompletas, são amostras de um fenômeno captado e convertido para outro formato, então o que manipulamos não é o fenômeno em si e sim uma representação dele. Quando manipulamos informações naturais captadas pelo computador, fazemos uma simulação incompleta, e em teoria incorreta, de como seria manipular aquela informação de forma real, para diversas áreas das ciências essas perdas de informações não afetam o experimento, mas para nossa pesquisa essa perda é crucial.
A informação digitalizada é naturalmente, incompleta e limitada, talvez por uma limitação técnica, ou simplesmente a forma como as coisas são, já que atualmente o computador não concebe nem mesmo gerar algo aleatório, se nós pedirmos um número aleatório o computador tem que criar algumas regras para definir qual número deve mostrar, isso porque o computador é uma máquina e necessita de uma determinação em forma de programação, então ele necessita de regras que determine qual número mostrar quando é pedido um número aleatório, o que torna o número pseudoaleatório, para obter um número verdadeiramente aleatório só com entrada de informações externas.
No mundo representação tudo é manipulável e hackeável.
Em uma pesquisa artística e especulativa como a nossa, onde tentamos comunicação com o oculto, o analógico é um aliado, porque só ele comtempla o desconhecido, enquanto o digital trabalha com o conhecido, ou quando o digital busca o desconhecido está sob regras e conceitos pré-definidos, o digital precisa no mínimo saber o que está procurando.
Em função de tudo isso, o sinal digital se torna obsoleto para nossa pesquisa pratica, é algo muito louco como uma tecnologia que vem depois é obsoleta? Mais é isso mesmo, ele já nasce limitado e para nossa pesquisa que requer uma prática constante de liberdade, é inviável fazê-la no mundo digital, pois seria uma mera representação falha da nossa pesquisa/interação e intenção.
Em qualquer comunicação a tradução é um grande problema, e em nossa pesquisa o digital é uma constante retradução, onde depois de tantas camadas fica quase impossível saber qual era a intenção “inicial”.
Como explicar a um computador o que discutimos no post, “Tem alguém ai?”, em que a intenção de chamar, já está chamando?, ou no post “o outro sou eu”, onde algo é o todo, mesmo sendo singular, ou até mesmo as possiblidades da arte que discutimos no post “As fantasmagóricas ações à distância, e a Arte”.
Por isso é tão difícil expor nossa obra por meio digital, o digital não entenderia, o digital representaria intervalos do objeto traduzindo em várias camadas duais, de zeros e uns, em ligado e desligado, sabemos que esse ligado e desligado é um pulso de energia analógico, porem é lido representando algo digital em processos de retraduções. Nossa obra precisa do analógico para ser sentida na complexidade do infinito, do ilimitado, assim precisamos das tecnologias analógicas, dos nossos corpos, das frequências dos pensamentos, das formas e sentidos das árvores e demais seres, para que a obra faça sentido e possa ser absorvida. Precisamos levar em consideração a infinitude de cada ser, e cada infinito terá experiências diferentes ao interagir com a obra e buscar sentidos dentro de si, como também discutimos no post “o outro sou eu” (entendendo que, quando uso o termo ser, falo de nós humanos, e também qualquer outro ser que interaja com nossa obra).
Por tudo isso que eu fiz esse diálogo com a obra “ La trahison des images“, pois ai em cima não é um nicuri, é a representação digital de um, e como é limitada.
Um nicuri tem textura, tem cores diferentes ao passar do dia e das semanas, tem sabor, tem interior, tem vida, essa imagem não, ela tenta uma representação de sua forma e nem isso consegue de maneira plena, pois quanto mais próximos chegarmos dos galhos do nicuri mais veremos e na imagem quanto mais zoom dermos mais perdemos.
No quintal de uma das casas que já morei tinha um pé de nicuri, eu me lembro de sua textura áspera ao tocar em seu tronco, eu me lembro da empolgação de dormir um dia com a árvore sem flores e acordar no outro e ver um pendão florido com um aspecto de macio como se fosse uma nuvem, de comer a carne de seu fruto, principalmente os maduros que caiam no chão já que é uma arvore um pouco alta para uma criança, me lembro de deixar o coquinho de dentro secar ao sol para depois quebrar e comer, me lembro de muitas vezes encontrar pequenas lagartas brancas dentro do coco e me lembro de algumas vezes só as encontrar depois de comer.
Essa é a memória da relação com o nicuri, e sem dúvida ao me reencontrar com outra árvore dessa, irei sentir muitas dessas sensações novamente, mas nunca as mesmas porque a minha memória são intervalos da complexidade infinita da árvore, e ao está em contato com ela novamente os sentimentos e percepção serão outros já que eu não sou o mesmo e árvore é outra da mesma espécie que acabo de conhecer.
Isso é o choque entre dois infinitos, e é esse choque que nossa obra busca traduzir em som, em outra forma de comunicação, esse choque é algo que não podemos ver nem ouvir mas podemos sentir.
Nossa pesquisa busca a comunicação com o oculto, procura o que não está em lugar nenhum, entende o que é impossível compreender, busca enxergar os limites do infinito e o choque entre infinitos e tudo isso é muito para um mero computador atual processar, ou manipular, coisa que só os nossos corpos aliados com as dimensões metafisicas podem sonhar sentir.
Assim saibam que, a única forma de sentir de fato nossa obra, é sendo parte dela, deixando-se envolver e envolvendo.
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Roberval, que massa acompanhar o amadurecimento de sua escrita e reflexões! Tenho muito a comentar desse texto, mas deixo para nossa reunião semanal! Parabéns pela bela trança de ideias!
que bom, ansioso por nosso encontro!!