A Liberdade da Cidade Utopia e heterotopia são duas formas...
Leia MaisAtravessamentos sensíveis do filme “Atlantique” (2019), de Mati Diop

Contra a secura e a aridez da cidade, a poeira das construções e o peso metalúrgico da estratificação social, o mar beira e brilha como um sonho e o barulho do quebranto das ondas é ritmo hipnótico para aqueles homens que não têm mais nada a perder.

Ao compartilhar com a professora Paola Barreto o resultado de um experimento que realizei no Mid Journey, numa tentativa de criar através da inteligência artificial uma fotografia que a minha máquina fotográfica ainda não pôde captar, ela me perguntou se eu conhecia o filme Atlantique.
Os olhos azuis, o corpo preto embebedado de mar e uma imponência sobrenatural são três caminhos que ligam àquela arte feita digitalmente pela inquietude de “não-conseguir” esse filme elaborado pelo incômodo de observar uma ruptura geracional na sociedade senegalesa ocasionada pelas imigrações em 2016. Maria Bethânia disse numa entrevista certa vez que a raiva é útil – de fato, seus desdobramentos, como a fúria, o incômodo e o cansaço também são.
Me pergunto quantas “coincidências” e paralelos podemos observar entre artistas distantes, mas com uma raiva em comum: a forma como o capitalismo selvagem engole nossos corpos e os regurgita – ainda que, mesmo com isso, exista algo de força maior e sobrenatural que atravessa linhagens, tempos e matérias.

O longa conta a história de Ada, jovem senegalesa prestes a se casar com Issa – rapaz pelo qual não sente atração alguma, enquanto vive um romance escondido com o jovem operário Souleiman, que embarca junto a seus colegas de trabalho ao mar rumo à Espanha.
Apresentado primeiro sob uma perspectiva masculina, o longa de estreia de Mati Diop introduz ao espectador as camadas de estratificação – seja da grande obra onde trabalha Souleiman, seja das camadas sociais apresentadas no decorrer do longa. A poeira, as linhas e a verticalização apresentada sob a perspectiva do personagem, atormentado pela falta de pagamento de ao menos três meses de trabalho, tece o pano de fundo no qual se desenvolve a obra.

Diop apresenta mais uma camada dessa estratificação, agora em diante sob a perspectiva feminina de Ada, que precisa se casar com um rapaz quase desconhecido para uma ascensão familiar. O que parecia ser mais uma releitura de romance shakespeariano ganha outro tom com a fantasmagoria apresentada daqueles corpos que se perderam no mar e voltam, inquietos, em busca de justiça.
Numa narrativa onde os papéis sociais da divisão sexual são claros quando os espíritos daqueles jovens provedores de suas casas possuem os corpos de suas companheiras, determinante para se pensar nessa forma de herança. “A terra não é só uma herança de nossos pais, mas o empréstimo de nossos filhos.” Esse provérbio iorubano, exuístico, reverbera ao pensar sobre a responsabilidade que temos com a nossa linhagem independente de seu Tempo. Assim como Exú nasce do mar, aqueles homens voltam à terra em suas companheiras a fim de colocar as coisas no seu devido lugar, por justiça e pelo que é direito. Na entrevista a Eric Hynes, da Film Comment, Mati fala da influência dos jinn, criaturas sobrenaturais muçulmanas que aparecem justamente entre o período do entardecer e o amanhecer.

Ainda com todo esse enredo, o filme só se tornou plenamente interessante quando é tomada a ciência de uma influência da diretora: provocada pela primavera dakariana, Diop trata o tema da imigração como um divisor geracional da população senegalesa: “Senti na minha imaginação que os jovens que via nas ruas [envolvidos em] incêndios e protestos eram habitados pela perda de todos os meninos desaparecidos. Senti que havia uma ligação invisível entre esses dois períodos, que os meninos que deixaram Dakar para a Espanha, aqueles que não conseguiram e que morreram no mar, levaram algo da vida com eles. (…). Tentar fazer coexistir estes dois capítulos, estes dois momentos precisos de Dakar, do Senegal, era algo que me interessava.” Confira na íntegra a entrevista: Mati Diop
Tratar da imigração e da busca por reparação social a partir de uma inserção do sobrenatural em uma narrativa que poderia ser um romance tornou a obra de Diop de uma sensibilidade crítica impecável. Do lado de cá, a angústia provocada pela falta de notícias e incertezas faz o espectador imergir no ponto de vista dessas famílias atravessadas pela imigração. As pausas e o ritmo ruidoso das frequências todas as vezes que o mar entra em cena e pousa sobre os olhos e ouvidos de maneira hipnótica evoca certo mistério. O fato de o som ser, de certa forma, incômodo, como se ouvíssemos ele estando submerso em alto mar, coloca o mar como uma figura de entidade viva dentro da história, e não apenas como um canal ou um ambiente.

De certa melancolia, talvez provocada pelos silêncios e pela mansa fúria desses corpos, Atlantique é uma obra poderosa que nos leva a pensar sobre até onde os ditames do capitalismo selvagem invadem nossa história, refletindo inclusive no âmbito espiritual. Mas, para além disso, nos mostra que os sonhos, ainda que jogados e perdidos em alto-mar, nunca morrem na praia.
Letícia França | Negalê
Estudante de Graduação do Bacharelado Interdisciplinar em Artes, na Universidade Federal da Bahia.
Bolsista e pesquisadora do Balaio Fantasma.
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