VI Simpósio Internacional da Rede LAVITS 2019

Quando imaginamos, em 2017, pela primeira vez, a possibilidade de trazer o VI Simpósio Internacional na Rede Lavits para Salvador, vislumbramos nesse destino um solo fértil para situar o debate sobre tecnologias de vigilância e sociedade, considerando nosso contexto latino americano forjado na colonialidade. Em 2019 essa decisão se mostrou não só acertada como oportuna, dado o acirramento do quadro político no país (impulsionado em grande medida pelas tecnologias pervasivas dos grupos de whatsapp e canais de fake news nas redes sociais), e a consolidação do nordeste brasileiro como espaço de resistência e luta.

Com sua urbanidade marcada desde a fundação por projetos de exclusão executados por políticas de morte, a primeira capital do Brasil se ergue como fortaleza da coroa portuguesa em meio a território tupinambá. É à essa terra que as tecnologias seiscentistas chegam varrendo povos originários e instalando a empresa colonial – onde se produzem não apenas epistemicídios, mas também tecnologias de resistência e rexistência, sobretudo a partir da chegada das populações africanas que aqui aportam escravizadas. Como eixo afro-atlântico, Salvador, a Roma Negra, reúne, em seu imaginário e sua geografia, lutas históricas e contemporâneas, e é esse germe que procurarmos ativar através da intensa programação de três dias que compôs o nosso Simpósio.

A conferência de abertura de Simone Browne deu o tom e a medida, trazendo uma leitura do dispositivo panóptico não a partir da torre de Bentham, mas do navio negreiro, pensando a plantation, o sistema colonial e a escravidão como tecnologias de vigilância e controle. No entanto o debate não foi pautado por uma perspectiva de diagnóstico, puro e simples, ou de paranoia e inação. Muito ao contrário, no desenho das mesas e das sessões temáticas buscamos de modo propositivo expor nossa visada sobre a tecnologia, a técnica e os modos de olhar e cuidar. Historicamente o conceito de tecnologia se constitui como categoria que se opõe ao “primitivismo” de corpos racializados ou à incapacidade de corpos feminilizados. Como se estes não produzissem tecnologia ou como se essa própria ideia de tecnologia, não fosse, ela mesma, produção racializada e generificada. Ao pensar a vigilância a partir do gênero e da raça produzimos outros embates e modos de pensar a tecnologia, que possibilitam desarmar armadilhas da colonialidade e criar modos de subjetividade potentes.

A imagem síntese que configurou não só a chamada de trabalhos, mas toda a visualidade do evento é o graffiti de inspiração Afrofuturista realizado pela artista soteropolitana Octaedro, estudante da graduação da UFBA. Nela vemos uma mulher negra segurando um objeto de poder, o que pode nos remeter tanto às sociedades secretas femininas e seu protagonismo nas lutas baianas pela independência e a abolição, quanto às Pretas Hacker, organização que reúne mulheres pretas que trabalham com tecnologia hoje no Brasil e sem a qual o VI Simpósio não teria acontecido como foi. “Mulher preta é revolução!” afirma outro graffiti reproduzido pelas ruas de Salvador. Desse modo, o Simpósio não poderia ser finalizado de forma mais apropriada: com a marisqueira Eliete Paraguassu encerrando a última mesa trazendo para arena a luta das comunidades quilombolas contra a exploração do Petróleo na Ilha de Maré.

Enfim, não seria possível aqui resumidamente sumarizar o que foi esse evento. Conseguimos ampliar a participação de mulheres, estudantes de graduação e comunidade LGBTQ, buscando na composição das mesas e das sessões temáticas, efetivamente combater assimetrias e invisibilidades. A programação artística intensa, realizada com grande participação de estudantes da graduação e da pós graduação de cursos da UFBA, compôs um amplo painel de estéticas da vigilância, incluindo espetáculos teatrais, performances, instalações interativas, mostras fotográficas e projeção de vídeos. Certamente muito ainda há a ser feito, no sentido de assegurar maior participação de pessoas em condição de vulnerabilidade social, ou pertencentes das ditas minorias sociais. Contudo, no balanço final, tivemos uma participação jovem, colorida e diversa. Em números: foram mais de 700 inscritos, mais de 100 trabalhos individuais apresentados,  programação artística diária com quase 20 trabalhos em distintas mídias e linguagens, 04 mesas de debates que lotaram o auditório, sem falar nas 8 oficinas, sessões livres e mostras paralelas dos trabalhos elaborados por estudantes da UFBA que ao longo de todo o semestre de 2019-1 desenvolveram trabalhos de arte e tecnologia em diálogo com a preparação para o Simpósio.

Vale também destacar a composição do grupo formado por 20 monitores, estudantes de graduação da UFBA, que realizaram, durante as semanas que antecederam o evento, uma imersão nas temáticas e práticas relacionadas ao VI Simpósio Internacional da Rede Lavits. Através de dinâmicas, leituras e exercícios buscamos preparar o grupo para uma participação ativa, não apenas material quanto imaterialmente. Considerando as limitações, os erros e frustrações diante da tarefa imensa que é combater o racismo e o sexismo dentro de sociedades, modelos e instituições que estruturalmente perpetuam dinâmicas de desigualdade, entendemos que o processo em seu conjunto foi enriquecedor para todos os envolvidos, caracterizando uma potente articulação entre ensino, pesquisa e extensão, envolvendo comunidade, graduação e pós graduação em um debate acadêmico de altíssimo nível.

A concentração em Salvador de pesquisadores e pensadores de destaque nacional e internacional no campo dos estudos de vigilância potencializou a vocação da cidade para o enfrentamento de lutas por direitos, liberdade e emancipação. Este senso de oportunidade – kairòs como lembrou o artista baiano Diego Araúja, em refinada reflexão sobre tempo crônico e Iroko,  certamente semeou esse território, abençoado com o axé e marcado por levantes e embates entre corporeidades e espiritualidades. Nessa encruzilhada saudamos a pedagogia de Exu, e aguardemos que novos germes frutifiquem em nossa Rede de Estudos de Vigilância da Bahia.

Site da rede LAVITS: www.lavits.org

Prof. Dr. Paola Barreto
Coordenadora Local do VI Simpósio Internacional Lavits Salvador
Coordenadora do Bacharelado Interdisciplinar em Artes
Instituto de Humanidades e Ciências Professor Milton Santos
Universidade Federal da Bahia